O Curandeiro do Largo da Batata

ATENÇÃO: Absolutamente todo o conteúdo desta publicação foi vivenciado, experienciado, degustado ou diretamente relatado a Zaso Corp., que não possui qualquer intenção de distorção ou sensacionalismo, apenas o mais puro relato da experiência.

Fotos: LEANDRO FURINI | Texto: JOE BORGES | Produção: DANIEL KUBALACK

Gastrite, artrose, enxaqueca, úlcera, corrimento, fadiga, bronquite, insônia, conjuntivite, assadura, micose, imposto de renda, gordura localizada, candidíase, virose, cagueira, ressaca, peruca, texto grande, testa pequena, unha encravada, indisposição, cancro mole e gases. Se você se identifica, e/ou sofre, com qualquer um destes males da vida cotidiana, Zaso Corp. pode ter a resposta para suas mazelas. Nos meandros do tradicional e movimentado Largo da Batata, localizado na Zona Oeste da cidade de São Paulo, está postado um humilde abrigo repleto de promessas em forma de ervas medicinais, comprimidos artesanais e as mais impensáveis alquimias que aquele perímetro pode imaginar. Este puxadinho, rodeado por lonas entrelaçadas e presas entre sólidas rochas e galhos de uma ansiã árvore, traz consigo a esperança de dias melhores para cidadãos encarquilhados pela rotina. Placas horizontais e rústicas escritas à mão com tinta vermelha chamam os transeuntes a experimentar curas alternativas para seus problemas. Foram exatamente estes chamarizes que pescaram a atenção dos zasalhas Joe Borges, Leandro Furini e Daniel Kubalack, enquanto passavam despretenciosamente pelo local numa tarde de sábado. O que estava por vir não poderia sequer ser imaginado pela mente mais debilmente fértil.

O lugar em que a barraca ficava localizada era longe da tradicional muvuca do largo, próximo de uma pequena ruela entre as Avenidas Teodoro Sampaio e Cardeal Arcoverde. Como animais que farejam alimento fresco, os súditos de Zaso Corp. se aproximaram lentamente da tenda. Ao chegarem mais perto, se depararam com um sem-número de potes, cumbucas e compartimentos contendo comprimidos separados por cores, plantas (já devidamente colhidas e ressecadas) e cantis com indecifráveis líquidos que pareciam licores, tudo muito bem organizado e com os seus devidos nomes escritos em caneta branca. Os produtos estavam arranjados em bancadas de compensados de madeira, pendurados a alicerces rústicos ou no próprio chão do abrigo. Ao fundo, na parte mais mocozada da barraca, uma cadeira de escritório vazia. Nem sinal de vida humana no local, no máximo algumas pombas que pareciam habitar a barraca com conforto e intimidade impressionantes. Ao fundo da tenda, havia uma pequena guarita de segurança. Dentro dela, um homem roncava largado para trás, tendo claramente atingido um estado de nirvana ao sétimo sono. Com fortes requintes de piedade, os jovens cutucaram o cidadão, que acordou semi-assustado, olhando de maneira desconfiada para os três estranhos. Educadamente, foi perguntado sobre o dono da barraca, respondendo prontamente que de sábado ele não vinha até o local, por questões de religião. Um tanto decepcionados, os zasalhas perguntaram qual seria o melhor dia para encontrá-lo. O segurança solicitamente respondeu que o melhor momento seria durante a semana. O nome do proprietário? Wilson Galane. Em uma das placas fixadas às lonas do abrigo havia um telefone de contato, era exatamente este número que interessava a entidade Zaso. Como o senhor Wilson tira os sábados para usufruto próprio, era uma questão de contactá-lo na segunda-feira. A missão naquele momento estava cumprida.

1211081502A quinta-feira seguinte foi o dia escolhido para a visita. Por motivos de labuta, Joe Borges foi obrigado a ausentar-se da missão. Com a cara e a coragem, Leandro e Daniel se organizaram para chegar ao Largo da Batata às 16h. O tempo estava assustadoramente fechado, o meio de tarde mais parecia um começo de noite apocalíptico. A tempestade avassaladora era eminente. Uma vez que se encontraram, não havia mais volta. Ao se aproximarem da barraca, os zasalhas conseguiram ver, de olhos cerrados, um parrudo ser humano afundado em uma cadeira vermelha típica de boteco. O homem ostentava saliente barriga para fora da desbotada camisa azul aberta, portando o que parecia ser um pano de chão ao ombro, calças sociais acinzentadas e o famigerado calçado Crocs com meia, o que acariciava a vista dos visitantes. O semblante do homem recém-idoso era de seriedade, embriaguez e sabedoria, algo flertante entre o guru e o goró. Ao pedirem licença para entrar na tenda, foram prontamente recebidos por Wilson, que saudou-lhes e pediu para que ficassem à vontade. Como frase de efeito de boas-vindas, disse em tom de mistério que os jovens estavam entrando numa loja de outro mundo. As rajadas de vento ficavam cada vez mais fortes, fazendo com que os galhos das árvores próximas estapeassem-se com lenta violência.

Wilson Galane é nascido há sessenta e cinco anos atrás, na cidade de Vargem, entre Bragança Paulista e Extrema, no interior de São Paulo. Morador da região de Pinheiros, divide seu quarto com uma moça, em uma pensão próxima de sua barraca. Segundo ele, a bela garota é tão solícita que até mesmo leva-lhe café e pão de queijo na cama. Isso que é amiga. Aproveitando o gancho de mulheres bonitas, foi perguntado por Zaso Corp. sobre qual seria a famosa mais linda de todas para ele. Um tanto hesitante, disse que faz tempo que não olha para “essas coisas”, mas acabou por responder que o mais bonito mesmo era ele. De quebra, ainda jogou no ar que quando era mais novo era um espetáculo de beleza, até mesmo perguntando para Daniel, que operava as perguntas, se ele conseguia imaginar o quão bonito ele fora em sua juventude. Uma pergunta complicado para o pobre rapaz. Sem nenhuma modéstia, Wilson completou que haviam mulheres que alugavam casas no fim de semana só para ficar do lado dele, pagando-lhe até mesmo jantares, bebidas e hotéis. Um garanhão de primeira linha. Sem mulher nem filhos, dedica seu tempo livre às novelas, seu maior hobby. Sua favorita é Sangue do Meu Sangue, clássico da televisão arcáica brasilóide, realizada pela extinta TV Excelsior. Recentemente, vem acompanhando as novelas da TV Record, mais precisamente, Escrava Mãe e Os Dez Mandamentos. Como não poderia deixar de ser, também é entusiasta de filmes, sobretudo de luta, faroeste e de temática bíblica, sua predileta. Inclusive, afirmou que conhece a Bíblia de cabo a rabo, sem nunca sequer ter lido-a, tudo graças a seu conhecimento de cinema. Prodígio. Torcedor do Palmeiras, não tem do que reclamar na atual conjuntura, dizendo, inclusive, que voltou a acompanhar o time devido à boa fase. Perguntado se gostaria de ressuscitar alguém famoso, não respondeu a pergunta e ainda disse que famoso era ele. Ousado. Wilson ainda contou para Zaso Corp. sobre sua relação com o álcool, afirmando não beber mais, porém, já tendo vivenciado grandes aventuras alcóolicas. Segundo ele, faz quinze anos que não bebe. O senhor afirmou que beber é pecado mas, como pecador que é, não resistiu ao deleite. Em tom de orgulho, disse que durante o almoço tomava dois litros de conhaque diariamente. Números realmente expressivos. Para finalizar seu panorama geral, Wilson disse saber andar de bicicleta, nadar, nunca ter sido atacado por animais silvestres, o que é excelente, e não ter medo de nada. Zaso Corp. já pôde ter um deguste acerca da personalidade do anfitrião.

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Wilson Galane, o curandeiro do Largo da Batata.

03Há quarenta anos, Wilson habita aquele local em que se encontrava, já tendo morado em cidades de todo o país. Antes de chegar à São Paulo, morou no Rio de Janeiro durante alguns anos, tendo saído de lá diretamente para um albergue da cidade de São Caetano. À época, no primor de seus vinte e poucos anos, vendia pamonha na Avenida Faria Lima, na altura do Largo da Batata. Na época, grandes terrenos arborizados dominavam o local, que era palco de um grande comércio a céu aberto. Segundo ele, o local tem esse nome por conta do forte comércio de batatas, quem diria, que vinham diretamente de Itapecirica e Campo Limpo, em parrudos carros de boi. Wilson vivenciou todo este cenário. Ao lado de sua barraquinha de pamonhas, havia um homem que vendia remédios artesanais. Em pouco tempo, acabaram ficando grandes amigos, o que passou a despertar o interesse do anfitrião. A amizade se tornou sociedade e os dois acabaram por alugar um pequeno local nos arredores para vender seus fármacos. Wilson passou a entender cada vez mais do assunto, tendo acesso, na época, ao único armazém de São Paulo que comercializava esse tipo de bem, na Avenida Duque de Caxias, no centro de São Paulo, de onde tirava a matéria-prima para suas alquimias. A popularidade de seu comércio ganhou corpo. Em determinado momento, comprou a parte de seu sócio e evoluiu o local ao ponto de chegar até mesmo a ter oito funcionário. Seu ex-companheiro de sociedade chegou a se arrepender e tentar voltar atrás em sua decisão, mas era tarde demais. Por motivos não declarados a Zaso Corp., deixou seu estabelecimento para montar sua tenda dos milagres ao mesmo estilo de seu atual mocó. Hoje em dia, o local em que um dia comercializara seus remédios se tornou uma tradicional drogaria. Inicialmente, armou sua barraca na Av. Cardeal Arcoverde, quase na esquina com a Faria Lima. Não demorou muito para que nosso anfitrião precisasse mudar de lugar para onde está atualmente, por motivos de crescente aumento do movimento de pessoas, carros, ônibus e outros empecilhos da vida moderna. Arejado e longe da muvacaça, Wilson encontrou seu recanto abaixo de uma bem dotada árvore, onde os zasalhas se encontravam frente a frente com ele. O local, apesar de humilde, tinha um aspecto bem cuidado. A pergunta que não queria calar naquele momento era se a supostamente frágil tenda sobreviveria à eminente tempestade que estava por vir, os ventos não paravam de ganhar força, o que vinha chamando muito a atenção dos preocupados jovens. Por outro lado, Wilson não parecia se incomodar, mantendo apaziguante calma enquanto falava em tom sereno.

Galane afirma ser um grande entusiasta de seus medicamentos naturais. Segundo ele, aquilo é a vida dele e é a única coisa que ele sabe fazer. Sem absolutamente nenhuma formação acadêmica, o curandeiro diz ter estudado o assunto de maneira autodidata e na prática. Todas as suas alquimias são feitas no local, com ingredientes vindos de diversos lugares. As cápsulas são adquiridas nas proximidades do Parque Dom Pedro II, servindo como invólucro para seus produtos que, devidamente macetados, são armazenados dentro das mesmas. Em apenas um comprimido, chegam a haver dezessesis elementos diferentes. Já as ervas e plantas são adquiridas em diversos e inúmeros locais diferentes, desde feiras até lojas especializadas. Nada do que ele vende é plantado e colhido por ele. Segundo Wilson, sua barraca recebe muitas visitas diariamente, dos mais diferentes países, crenças, estilos e formatos. Muitas pessoas, inclusive, se emocionam e acabam se abrindo de maneira espontânea para ele, que acaba fazendo também papel de psicólogo. Em se tratando de clientes famosos, citou que Paulo Henrique Amorim recorreu aos seus serviços, não querendo divulgar o motivo por questões éticas. Perguntado sobre os remédios mais requisitados pela clientela, afirmou que os mais populares são os de emagrecimentoimpotência sexual e incontinência urinária. Para emagrecimento, é receitada uma cápsula ao dia, composta por louca mistura incompreendida pelos nossos correspondentes, sendo que a mesma necessita ser acompanhada por exercícios físicos e re-educação alimentícia. Já para a impotência sexual, as famigeradas catuaba e guaraná dão as caras. E, por fim, em se tratando de incontinência urinária, o barbatimão é que da as cartas para os pacientes que sofrem do male, em sua maioria mulheres, segundo o anfitrião. Já que o assunto transitava pelos vastos campos das plantas e ervas, e como não poderia deixar de ser, Zaso Corp. perguntou para Wilson qual sua opinião sobre a maconha. O senhor afirmou de maneira serena e sensata que acredita que todo tipo de droga pode levar à dependência, porém, acredita que a maconha não traz grandes males à saúde, dizendo até mesmo que já fumou muito em seus tempos de juventude. Segundo ele, é menos nocivo do que muitas drogas lícitas que são comercializadas abertamente por todo canto.

0706Os remédios de Wilson Galane não necessitam de prescrição médica alguma. O senhor até mesmo afirmou que muitos médicos indicam-lhe para seus pacientes. Deixando a humildade no bolso direito da camisa, disse que suas soluções são muito melhores, afirmando, literalmente, que enquanto a medicina tradicional demora de dez a quinze tentativas para acertar o problema, ele acaba por ter uma mira muito mais certeira, acertando de primeira. No momento em que desferia estas palavras, um homem relativamente jovem interrompeu o assunto, apressado para não se molhar com a chuva, perguntando para o comerciante se ele tinha remédio para dermatite. Fazendo cara de confusão metal, Wilson disse que iria averiguar e pediu para que o homem voltasse no dia seguinte. Voltando ao assunto com Zaso Corp., o dono da casa se empolgou, dizendo que nunca houve um cliente insatisfeito, caso contrário, deixaria de trabalhar. A faixa de preço é alta, o curandeiro afirmou que é o mais careiro de todos, sem titubear. Disse que enquanto uma farmácia vende por cinco reais um determinado remédio, ele vende por dez. Sem contra-indicações. Perguntado se existem outras pessoas na cidade fazendo o mesmo trabalho que ele, desferiu que não só ele é o único de São Paulo como do Mundo. Em tom de auto-confiança disse que se houvesse alguém melhor do que ele, pararia de trabalhar imediatamente, pois não faria mais sentido continuar. Como cereja do bolo, entrou no assunto dinheiro. O cidadão afirmou que não se preocupa com a questão, dizendo que ganha muita grana com suas habilidades medicinais. Em tom de deboche, disse que estava com os bolsos lotados de notas de cinquenta e cem reais. Vendo que os zasalhas não se impressionaram muito, até mesmo mostrou um bolo de bufunfa digno dos mais periculosos mafiosos de filmes hollywoodianos. Calando os críticos.

Em meio a explicações diversas acerca de suas peripécias, Wilson resolveu cordialmente oferecer um beberico aos zasóides. Ao lado de sua cadeira, havia uma garrafa pet composta de um líquido amadeirado, repleta de pequenos e cilíndricos pedaços de madeira, do tamanho de aparadores de copo. Tendo puxado dois copos descartáveis, o anfitrião serviu o primeiro, avisando que o drinque seria uma marretada nas idéias. Daniel imediatamente se prontificou a aceitar a oferenda. Virando o deleite de uma vez só. Fez careta mas disse que não era tão ruim. Ao passo em que Leandro já estava com seu copo em mãos, em meio a um degustante gole, Wilson disse-lhes, em tom de lição de vida, que aquela era uma mistura de sucupira e álcool de limpeza. Isso mesmo, daqueles que se usam para desinfetar a cozinha. Surpresos, Daniel e Leandro se entreolharam. Leandro tirou o copo da boca como se tivesse tomado um choque no beiço, dando aquele famoso migué, encostando a bebida no chão. Confrontado por Daniel por não ter tomado completamente seu tira-gosto, Leandro argumentou que seu copo viera mais cheio e que ele já tinha dado um golaço no mesmo. Os zasalhas tentaram argumentar com Wilson, dizendo que não era possível que ele estivesse servindo álcool de limpeza para eles, mas o senhor irredutivelmente dizia-lhes que aquela bebida era ótima para a limpeza do organismo. Daniel, que possuía cerca de duzentos mililitros do composto agindo em seu corpo no momento, ficara embriagado de uma maneira esquisita e que deixaria-o um tanto bagunçado das idéias por horas, e quiçá dias.

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Sucupira com álcool de limpeza.

Ao longo da entrevista, o semblante de Wilson ia mudando significativamente. O que começou como um relato sereno passou a morfar para um assunto cada vez mais flertante com as crenças pessoais do anfitrião, sempre em um tom desafiador em relação aos entrevistantes. Em paralelo, a chuva começou tímida. Leandro perguntou a Wilson se ele não gostaria de ir para um local mais reservado e protegido. Prontamente, o senhor respondeu que não e que morreria ali se fosse necessário. Em pouquíssimos minutos, o aguaceiro se transformou numa fortíssima tempestade, maior ainda do que os zasalhas estavam prevendo. Como num deus nos acuda, os jovens passaram a tirar suas mochilas e pertences de locais em que a água fosse agredi-las, tentando ao máximo se proteger, migrando para um canto menos vulnerável à chuva. Wilson, por sua vez, calmamente levantou de sua cadeira de boteco em direção ao fundo da barraca, onde uma cadeira de rodas estava postada. Calmamente, sentou-se nela, observando a chuva tranquilamente.

Daniel gravara toda a entrevista, até então, em seu celular. Subitamente, seu smartphone parou de funcionar. Raios caíam perto do local, o que preocupava os zasalhas, já que estavam debaixo de uma grande árvore. Os jovens cogitaram correr para um local seguro. Porém, foram acalmados por Wilson, que tranquilizou-os, de maneira não tão tranquilizante, afirmando que os para-raios dos prédios próximos fariam seu trabalho. Tudo que estava pendurado nos alicerces da tenda passou a balançar violentamente, numa louca e embriagada dança que ameaçava arremessar tudo pelos ares. A lona estava querendo mais que tudo sair do lugar, enquanto os zasalhas seguravam-na como que em um navio à deriva, numa cena realmente preocupante. Segundo o calmo senhor, apenas uma vez a lona da barraca voara, em quarenta anos. Imediatamente, alguns potes e ervas foram arremessadas pelo forte vento em direção ao descampado, rapidamente se espalhando ao redor da barraca, que já começava a ter pelo menos dois dedos de altura de água ao chão. Absolutamente tudo balançava, num terremoto de vento e água. Wilson disse que não havia problema nas coisas voarem e o que tivesse que acontecer aconteceria. Segundo ele, tudo estaria devidamente organizado antes que os jovens se dessem conta. Olhando ao redor, ficava claro que a luz de toda a região havia acabado, enquanto os raios só aumentavam de intensidade e agressividade. Eram momentos de absoluta tensão.

Com a trégua no dilúvio, a entrevista com Wilson Galane pôde voltar ao seu curso normal. O estrago nos zasalhas era evidente, estavam encharcados dos pés à cabeça. Enquanto isso, Wilson parecia intacto, com as roupas praticamente secas. Apesar de estar ao fundo da tenda, tudo ao seu redor, inclusive as paredes da lona, que eram completamente abertas pelo lado, haviam praticamente esfalecido em água. A parte de trás da barraca fora uma das mais atingidas, apesar da invulnerabilidade de seu dono. Quase que imediatamente após o término completo da tempestade, que fora bastante abrupto, a bagunça de produtos ao chão, tanto fora quanto dentro da barraca, era muito grande. Em menos de um minuto, enquanto os zasalhas procuravam se recompor, surgiram três homens munidos com vassouras, passando a limpar tudo que estava caótico ao redor. Em trajes civis, não pareciam ser funcionários da prefeitura, ou qualquer outro lugar. Os zasalhas se distraíram por alguns instantes, no intuito de preparar novamente a entrevista e poder continuar de onde haviam parado. Quando se deram conta, os arredores da tenda estavam completamente organizados e limpos, tanto quanto no momento em que chegaram, cerca de uma hora antes. Os homens que limpavam o local simplesmente evaporaram. “Viram? Como tudo se resolve?”, disse Wilson, apontando ao redor de maneira quase que irônica, com requintes de orgulho. Apesar da chuva ter cessado, o céu ainda continuava muitíssimo escuro e agressivo. A energia elétrica ao redor não havia voltado, o que dava um clima extremamente soturno ao fim de tarde. O semblante do curandeiro mudara ainda mais, suas olheiras estavam mais acentuadas e seu sotaque, que era carregadíssimo para o interior de São Paulo, parecia ter sumido. Seu olhar que era muito fixo parecia agora penetrar a nuca dos zasalhas.

05O fato de Wilson ter recorrido à cadeira de rodas quando o dilúvio começou, apesar de aparentar andar perfeitamente, intrigou os zasalhas, que não poderiam deixar de indagar sobre o assunto. Há cerca de um ano atrás, mais precisamente em Setembro do ano passado, numa sexta-feira, Wilson começou a se sentir esquisito. Seu pé inchara consideravelmente, o que preocupou-o de imediato. Como sábado é seu dia de descanso e no domingo os postos de saúde públicos estavam fechados, esperou até terça-feira para ir ao pronto-socorro. E por quê não na segunda-feira? Porque era feriado. Um combo de datas que poderia ter tido consequências mais drásticas. Quase sem forças para andar, o entrevistado disse que foi a pé até a Lapa para ser atendido. Chegando ao local, foi imediatamente internado em estado quase grave, por conta de uma crise aguda de diabetes. Os médicos tiveram que amputar-lhe um dedo e colocaram-no em uma cama, assistido por enfermeiras. Durante sete longos meses, ali ficou. Wilson disse que seu corpo ficou completamente travado em determinado momento e que, durante quatro meses, as enfermeiras tiveram muita dificuldade em cuidar dele, que não é nada pequeno. O curandeiro tinha certeza que não sairia vivo desta experiência, houve um momento em que ele tinha que usar fraldas e era puro osso. Ao longo de alguns anos, Wilson vinha tomando remédios para diabetes, em forma de comprimidos diários. Ou seja, não era algo que ele não tinha conhecimento. Segundo o próprio, foi Deus quem tirou-o do buraco, fazendo com que ele melhorasse gradualmente. Quando já havia melhorado o suficiente para não ser mais um peso morto no hospital, em Abril, voltou para seu lar, ainda longe de estar completamente curado. Descrente dos efeitos dos remédios para diabetes prescritos pelo seu médico, cessou em tomá-los e passou a se automedicar com suas próprias ervas. O resultado estava à frente de Zaso Corp., o homem parecia saudável feito um búfalo.

Nesse tempo todo de internação, sua barraca ficara largada exatamente como deixara-a, completamente vulnerável a todas as interpéries que a cidade grande poderia proporcionar a ela. Segundo ele, ninguém mexeu nela de maneira significante, estava intacta quando voltou. Impressionante, realmente. Perguntado sobre frequentes roubos, disse que apenas uma vez roubaram-lhe um óculos que ele deixou largado em um canto, mas afirmou prontamente que tem outros sete, então, aquele não lhe fez falta. Para concluir seu pensamento, afirmou que se um dia roubarem seus produtos ao ponto de lhe trazer enorme prejuízo, imediatamente abandonará o ramo, aceitando o ocorrido como um sinal divino para que ele não mais exerça sua missão. É ai que Zaso Corp. adentrou o mais fértil terreno da mente de Wilson Galane, sua ideologia.

Ao longo de toda a conversa, uma questão levantada pelo alquimista trouxe estranhamento em Zaso Corp., ao ponto de perguntarem-lhe de maneira indiscreta. Como poderia alguém que não tem nenhuma formação acadêmica afirmar tamanho conhecimento e credibilidade? O que validava suas alquimias, experimentos e remédios naturais? Ao crivo de olhos mais criteriosos, não parecia tão convincente. Sua resposta foi simples e estridente: ordens superiores. Wilson afirmou que recebe, através de vozes, o que deve fazer, e de que maneira, considerando-se apenas um instrumento de forças do além, e muitas vezes ambíguas, segundo ele próprio. Neste momento, ele chegou à mudança mais significativa de semblante, algo como se a situação tivesse se invertido completamente e ele passasse a entrevistar os jovens, testando-lhes e procurando lhes provar, tudo com o intuito de transmitir-lhes ensinamentos, fossem eles apenas para confundir suas mentes ou esclarecer suas dúvidas. A densidade do ar tomava níveis alarmantes.

1009Wilson Galane é seguidor da Lei de Moisés, conhecida popularmente como Os Dez Mandamentos. Em contrapartida, segue uma doutrina hedonista, com um pensamento muito voltado para aproveitar a vida de maneira intensa, vivendo cada dia como se fosse o último. Como ele bem disse, todos vamos morrer, independente de posição social, família, dinheiro e intenções. Segundo ele, não existe sensação pior do que chegar à terceira idade e perceber que poderia ter feito uma série de coisas que não podem mais ser executadas por questões físicas e mentais. Em se tratando de enfermidades, Wilson acredita que não há doença física, mas sim um demônio atacando seu corpo incessantemente, esperando para ser combatido por seus medicamentos. Adepto do silêncio como forma alternativa de cura, disse também que ficar falando muito sobre os problemas, ou doenças, acabam por potencializá-la. Um ponto de vista deveras interessante. Alheio à religião, afirma não possuir nenhuma, apenas seguir os ensinamentos de Jesus. Inclusive, se mostrou um grande crítico às religiões. Frequentador da Igreja Adventista, afirmando que, ao contrário de outras religiões, eles não tentam impôr-lhe nada, disse que não gosta do judaísmo porque os judeus não gostam de Jesus e acha que o demônio criou várias diferentes religiões para confundir a mente das pessoas. Foi com base neste raciocínio que Wilson chegou ao assunto que mais lhe trouxe metamorfose facial: a Igreja Evangélica. O curandeiro se empolgou de maneira não antes vista, afirmando já ter conhecido Edir Macedo em um evento no sítio do próprio. Segundo ele, acha que a intenção destas igrejas neo-pentecostais não é necessariamente enriquecer às custas de seus fiéis, mas roubar-lhes, literalmente, as almas. A sinceridade e convicção com a qual ele dizia isto eram cativantes. Wilson afirmou que os pastores são os verdadeiros anti-cristos e que suas sedes de poder acabam fazendo com que eles façam qualquer coisa para engordar seu rebanho. Como que reconhecendo certo mérito, afirmou que Edir Macedo é tão inteligente quando qualquer outra pessoa, utilizando este poder para os próprios fins da igreja. Disse que ele literalmente come a mente das pessoas. A todo momento em que explicava sua teoria sobre o magnata pastor, Wilson perguntava aos zasalhas se eles estavam entendendo sua mensagem, como que para se certificar, chegando a um grau de redundância alto. Também de maneira efusiva, dizia que os jovens zasóides eram muito inteligentes e que ele sentiu a necessidade de passar esta doutrina para eles, desferindo leves sorrisos em meio a seu semblante momentaneamente sisudo. O anfitrião bateu o último prego de flexibilidade e variedade de argumentos e ideologias afirmando certeza na existência de extraterrestres. “As coisas existem. Existem coisas paralelas”, disse de maneira misteriosa, e quase indecifrável. Seu comentário foi digno de gelar a espinha.

04Apesar do fim de tarde estar se aproximando com cada vez mais força, e da luz não ter voltado, o céu abrira de maneira considerável. Os zasalhas, já satisfeitos com o conteúdo coletado, sentiram que era o momento da partida. “Ta na hora de vocês irem embora, não?”, disse Wilson, de maneira irônica. Realmente, era o momento. Ao prestarem atenção ao seu semblante, os zasalhas perceberam uma visível abrandada, ele estava mais calmo e sereno, como no momento em que recebera os jovens. Já de mochilas e pertences devidamente recolhidos, porém encharcados até o osso, os correspondentes d’Zaso Corp. se despediram do anfitrião, que ainda profetizou que os jovens voltariam novamente até sua barraca, quase que em tom de desafio, lançando seu tradicional olhar fixo em direção aos confins da nuca. Mais do que de imediato, Leandro e Daniel se despediram de Wilson Galane, que, por fim, ainda agradeceu-os por ajudá-lo a segurar sua barraca durante o dilúvio. Parecia satisfeito.

Aquela fora, sem dúvida, a mais intensa e transcendental conversa que os zasalhas tiveram enquanto súditos da entidade Zaso, fato que marcou-os por um bom punhado de tempo. Ainda baqueados, sobretudo Daniel, que havia ingerido quantidade considerável de goró batizado, partiram para o seu destino final, um boteco próximo dali, no intuito de arejar suas mentes e colocar as experiências na mesa. Já com a noite estralante, e com o bar iluminado apenas por luz de velas, começaram a perceber as abruptas mudanças de expressão e postura que Wilson obteve. Segundo suas percepções, nestas cerca de duas horas de contato com o mesmo, puderam vivenciar várias pessoas em uma só, convivendo de maneira ambígua dentro de um só corpo. Ficava evidente que o próprio relato de Wilson acerca das vozes que comandavam-no fazia um bom sentido em se olhando desta ótica. O momento em que expôs sua visão ideológica trouxe com força essa impressão, devidas às ambiguidades que compõe o mosaico da mente do alquimista.  A visão de mundo de Wilson é tudo menos ortodoxa, quase que como se a manufatura de seus medicamentos fosse uma metáfora para o que acontece dentro de sua mente.Sua presença fora marcante de uma maneira que os zasalhas não conseguiam explicar. Independente de razão, não cabe a Zaso Corp. julgar, apenas relatar. Ao que parece, o curandeiro do Largo da Batata não é de fácil abate, parece ter muita lenha para queimar. Não se sabe se a profecia do curandeiro se tornará realidade e os zasalhas voltarão ou não à recorrer sua presença. Fica em mais em aberto ainda, com o que, ou com quem, iriam se deparar desta vez. Se você, atento internauta, confia nas vozes que guiam o nosso protagonista em sua empreitada, dê-lhe uma chance e prove a solução que ele propõe para esta mazela que está te incomodando neste momento. Você sabe que ela está ai acompanhando-te como uma sombra.

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