Fotos: LEANDRO FURINI | Texto: JOE BORGES | Produção: DANIEL KUBALACK
O churro é um estilo de vida típico da Espanha, onde a sua prática é bastante diferente da vista em terras tupiniquins. Enquanto por aqui a versão recheada domina os paladares dos entusiastas, na Espanha o mais comum é comê-lo puro e chunchando-lhe no chocolate espesso, quase ao ponto de flã. Para acompanhar, um chá-mate funciona mais do que bem. No Brasil, a fama deste acepipe tão carismático tomou corpo sobretudo por conta do lendário seriado de humor mexicano Chaves, em que o protagonista ajuda o mulambento Seu Madruga a comercializar tal iguaria, na vila em que habitam. Porém, muito antes do seriado galgar seu espaço no país, uma família de espanhóis começaria sua saga churrística na cidade de São Paulo, revolucionando para sempre a maneira de se fazer churro. O que começou como uma prática trazida da Espanha, e evoluída pela família Farre, acabaria por culminar em um dos estabelecimentos mais tradicionais da zona leste paulistana, a Casa do Churro.
Em 1953, um casal de espanhóis e seus três filhos acabariam por migrar para o Brasil em busca de melhores oportunidades, sobretudo por conta do pós-guerra que a Espanha vivia. Recém-saídos de Barcelona, acabariam por chegar ao bairro do Belém. O pai, José Maria Ferré, que trabalhava com fundição de peças, e a mãe, de ocupação não divulgada, logo se ajeitaram no país, sendo prontamente ajudados pelos filhos: Consuela, que acabaria por se tornar cabeleireira; José, que já iria apontar o nariz para a mecânica de peças automotivas; Ramón, doceiro de mão cheia; e Antonio, que ajudaria seu pai e seu irmão confeiteiro em seus devidos afazeres. Como forma de angariar o famigerado dinheiro, começaram a participar de feiras, sobretudo alimentícias. Ramón, o doceiro da família, teve então uma idéia de acepipe para ser comercializado. Entusiasta de maçãs argentinas, mais precisamente do modelo Rome, a popular maçã vermelhaça levemente azeda e doce pra cacete, o jovem resolveu acrescentar à mesma uma cobertura cristalizada de açúcar a ponto de bala, técnica oriunda da China. A maçã, envolta na crocante calda, recebia um palito em sua base, para facilitar sua devoração. O debute da maçã cristalizada seria no Largo do Rosário, popular praça do bairro da Penha, na zona leste de São Paulo, no ano de 1956, três anos depois da chegada da família ao país. A popularidade do doce, que era vendido pela mãe, foi de ascensão meteórica, a família Farre logo levaria-o para eventos mais conceituados e de alcance maior.
Nos altos de 1958, apadrinhados pelo organizador de eventos Caio Alcântara Machado, os espanhóis montaram sua bancada de alimentos na marquise do Ibirapuera para a Feira de Utilidades Domésticas, uma das maiores e mais populares da cidade na época, de onde grandes ícones da cultura popular alimentícia, como o cachorro quente e o hambúrguer, saíram para o povo paulistano pela primeira vez na história. O carro chefe da família era a maçã cristalizada criada por Ramón. O sucesso foi instantâneo, chegariam a vender 27 caixas em um só dia, num total de cerca de 180 frutas, números expressivos e que causaram grande rebuliço entre os populares. O organizador, fascinado com o sucesso da iguaria, cobraria, de maneira bem-humorada, que a família desse um nome para a invenção. Durante impasse familiar por conta do nome, o pai da família resolveu propor que a invenção fosse chamada de Maçã do Amor, remetendo diretamente a Adão e Eva. O nome, no final das contas, foi o escolhido para representar de maneira epifânica a invenção de Ramón. Nunca mais sairia do imaginário de todos os brasileiros, e quiçá, seres humanos.
A invenção da Maçã do Amor catapultou a popularidade da família durante as feiras paulistanas, fazendo com que um próximo passo tivesse que ser tomado. No ano de 1959, com tremenda burocracia, Ramón conseguiria, ao longo de um ano de muita dor de cabeça, indo e vindo do Rio de Janeiro para São Paulo, patentear sua invenção, para o espanto de muitas pessoas, inclusive de alto escalão da República Federativo do Brasil. Xuxa e Roberto Marinho, ele mesmo, o Senhor dos Anéis da Rede Globo de Televisão, vieram conferir, com os próprios olhos, o documento da patente, que está cravado na parede da Casa do Churro até hoje. Tamanho espanto se dá por conta da raridade que a patente de uma fruta representa. Porém, vale ressaltar que, apesar do documento ainda estar cravado na parede, nossa equipe descobriu que a patente da invenção de Ramón caiu dez anos depois de sua criação, fazendo com que a família acabasse acionando por diversas vezes advogados a fim de parar o constante uso de sua marca, acabando vencidos pelos excessivos gastos.

Não satisfeito com o sucesso do quitute, Ramón traria à tona um dos mais tradicionais deleites da história de seu país de origem, o churro, só que dessa vez em um formato nada ortodoxo aos olhos dos consumidores brasileiros: em roda. Apesar do acepipe já existir no país, o churro em roda era absoluta novidade, sendo colocado prontamente em prática na Feira de Utilidades Domésticas de 1961. O sucesso foi tão estrondoso quanto o da maçã, fazendo com que rapidamente uma nova vertente fosse criada pelo mesmo doceiro, o churro recheado. A idéia era fazer um furo no meio do quitute e preenchê-lo com um recheio espesso, à princípio doce de leite e/ou chocolate. A alta demanda fez com que uma traquitana precisasse ser criada, no intuito de facilitar o recheio do alimento, a Bomba Cheque-Cheque. A engenhoca era formada por três peças fundamentais: um compartimento para colocar o recheio, um cano, por onde este seria expelido em direção ao churro, e uma alavanca, no intuito de pressionar o recheio pelo cano, fazendo com que ele atingisse seu destino final. Além de utilizar as máquinas nas feiras e eventos que faziam, acabavam por comercializar apenas algumas delas, a grande parte era para uso próprio. Não demorou muito para que a popular invenção começasse a ser copiada na caruda por empresas de índole duvidosa. A essa altura, a atuação da família já atingia proporções maiores, como Salão do Automóvel, Salão da Criança, Feira do Couro e muitos outros eventos de grosso calibre. Foi nesse momento que Antonio, o irmão que sempre esteve ali junto ajudando, mas sem brilhar tanto, entrou em cena, inclusive sendo o entrevistado pela entidade Zaso, trazendo para o internauta atento todas as informações contidas neste relato.

Antonio Farre Martinez, nascido há 69 anos atrás, em Barcelona, ajudava a família em suas aventuras nos eventos que participavam e dividia sua vida com outras atividades que muito lhe agradavam, como, por exemplo, o futebol. O corintiano afirmou com efusividade que era um ás da bola. Jogou como “profissional” de futebol, apesar de afirmar ter atuado com mais ênfase na várzea, sobretudo no interior de São Paulo. Aos 19 anos, costumava frequentar a Ponte Preta, tradicional equipe do futebol de Campinas. Centroavante de forte bomba, Antonio afirmou já ter estourado três bolas de futsal e feito mais de 420 gols em um ano quando jogava futebol de salão. Sua cobrança de falta era extremamente temida. Afirmou ao Zaso Corp. que costumava chutar o primeiro petardo em algum homem da barreira, causando-lhe cagaço extremo, e o segundo direto para gol, com o homem atingido já atirado ao chão. Amigo do afilhado do presidente do Santos na época, o espanhol afirmou que só não foi para o Barcelona porquê não quis. De maneira confiante, disse que diversos jogadores consagrados da época, como Liminha e Valdemar, conversaram com seu irmão para levá-lo para seus respectivos clubes, no caso, Palmeiras e Corinthians. Mas nada disso interessava ao jovem Antonio, ele estava apenas tirando uma onda de boleiro. Na realidade, o que gostava mesmo era de tirar um troco jogando na várzea do bairro da Móoca. Àquela altura, estudava a chamada “madureza”, uma espécie de pré-faculdade da época. Não muito fã dos estudos, começou a se envolver cada vez mais nas feiras e eventos cobertos pelo irmão, Ramón, tendo fundamental importância no período churráceo da família Farre.
Em 1964, com Antonio e o irmão já mais amadurecidos, a família passou a vender churros num balcão cedido gentilmente pelas Lojas Brasileiras, tradicional concorrente das Lojas Americanas na época, tendo encerrado suas atividades há quase vinte anos atrás. O estabelecimento se localizava na popular Avenida São João, próximo do atual Bar Brahma. O gerente do local, que também era espanhol, cedeu o espaço do outro lado da loja, após ficar sabendo da fama que os doces de Ramón vinham ganhando pela cidade. O churro recheado, sobretudo no sabor doce de leite, era o grande carro-chefe. O sucesso da bancada chegou até mesmo a atrapalhar as vendas das Lojas Brasileiras, que acabaram tendo sua sessão de doces extremamente prejudicada. Fatalmente, os Farre tiveram que deixar o local, voltando assim a se dedicar às feiras e eventos, não que isso representasse um problema para eles, já haviam atingido um modus operandi invejável. chegaram até mesmo a vender oito mil churros durante uma feira no Anhembi, munidos de um arsenal de quatros máquinas, cada uma com quatro pontas, operadas por quatro pessoas e com cerca de vinte quilos de recheio em cada, quebrando o recorde universal de churros, cerca de dezesseis por minuto, dados cedidos por Antonio. A equipe, e demanda, da família ia ficando encorpada ao ponto de um ponto físico se ver extremamente necessário.
O mundo do churro exige comprometimento, respeito e entrega de corpo e alma. Sentindo que finalmente haviam atingido um grau de excelência digna de estátua em praça pública, resolveram adquirir seu próprio estabelecimento, a Casa do Churro. Criada em 1996 e com a sua atual matriz localizada no bairro do Tatuapé, esta desde 2001, o templo, que fora gerido por durante décadas pelo pai da famíla Farre, acabaria passando para as mãos dos filhos Ramón e Antonio. O local simples e objetivo de paredes impecavelmente brancas e clima asséptico viria a se tornar um verdadeiro ponto de encontro das mais ecléticas e democráticas castas da sociedade capitalista. Apesar da diversidade imensa de sabores e possibilidades, o churro recheado não deixaria de ser o grande atrativo da casa. Com o recente falecimento de Ramón, o estabelecimento acabaria nas mãos de Antonio e seu filho, Leandro, que até os dias atuais gerem a casa. Para fazer a transição entre os tempos vindouros e os atuais, nada mais justo que uma conversa com o próprio proprietário.
Antonio é um metódico de mão cheia, sempre extremamente preocupado com padrões de qualidade e logística. Orgulhoso da trajetória que o churro de sua família teve até os dias atuais, deixa claro que prefere manter a essência da coisa mais pura possível. Segundo ele, o assédio de diversos empresários e oportunistas sempre foi muito grande. Disse, categoricamente, que um sheik de Dubai, capital dos Emirados Árabes, veio recentemente ao Brasil para provar o lendário churro recheado. Fascinado, veio propôr parcerias e franquias, propostas que não agradaram o desconfiado Antonio e seu filho. Quando o assunto é franquia, preferem ter todo o cuidado do mundo, dando preferência, segundo o proprietário, para os Estados Unidos, por achá-los mais sérios e confiáveis. Engana-se quem acha que o churro recheado, sempre importante frisar que é criação brasileira, não ultrapassou as fronteiras geográficas desse mundão afora. Ainda em se tratando da Terra do Tio Sam, mais precisamente da Disney, barracas contendo o doce foram avistadas por diversas vezes operando independente da matriz e da aprovação da Casa do Churro. Antonio deixou muito claro que não confia na metodologia de se fazer churros de outras pessoas, e/ou estabelecimentos. Segundo ele, a arte de se confecionar o quitute foi bastante distorcida, citando diversos exemplos, com nomes e o escambal envolvidos, que não poderemos relatar por questões éticas. Desde a maneira de confeccionar as máquinas até a maneira de rechear se perderam muito, segundo Antonio. Muito crítico, afirmou que chilenos, argentinos e mexicanos não sabem fazer o verdadeiro churro. Até mesmo espanhóis de Madri vieram para o Brasil para provar o churro da casa, felicitando-o de maneira entusiasmada, dizendo que nem em Madri existe churro dessa qualidade. Em meio a ferrenhas críticas à heresia churrácea, Antonio trouxe à tona um assunto extremante polêmico e que divide opiniões até hoje em diversos lugares e classes sociais do mundo: Chaves. Segundo o espanhol, o seriado de humor pastelão não agrada-o nem um pouco, pois denigre a imagem do churro, afirmando que o quitute mostrado por ele é uma fritura impostora que não deve ser dada nem para cachorro. Palavras duras de um veterano.

O código de ético do churro é claro e direto. Para saber se um exemplar é realmente de qualidade deve-se prová-lo ao modo espanhol, sem recheio e chunchado no chocolate espesso. Se o mesmo for seco e sequer grudar no papel, está mais do que aprovado. Estudioso do assunto, Antonio Farre é um entusiasta do modo espanhol de se comer churro. Por outro lado, a vida lhe trouxe uma série de mazelas que acabaram por minar o seu consumo do alimento, tornou-se diabético. Para seu próprio deleite, criou o churro para diabéticos, afirmando que mesmo assim não o come mais, pois, querendo ou não, o churro é fritura e faz mal. Sua responsabilidade parece não ser peculiar a todos os frequentadores. Em certa feita, afirmou que um rapaz de cerca de 17 anos chegou a comer um churro em roda inteiro, que tem cerca de três metros de comprimento. Antonio estarrecido com a situação, ficou extremamente preocupado com o garoto, que apareceu dias depois de ter passado muito mal. Um emocionauta, sem dúvida. A parruda iguaria não emociona apenas o garoto em questão, Antonio confidenciou para Zaso Corp. que a embaixada espanhola tem o costume de pedir carregamentos de churro em roda. Quando o ex-presidente espanhol José Maria Aznar veio ao Brasil, prontamente fez um bruto pedido de rodelas churrais. A emoção pelos churros da casa já chegaram a atingir até mesmo jogadores de futebol, sobretudo corintianos, assim como figurões da televisão brasileira. Segundo Antonio, Vampeta, que é morador do bairro, sempre foi um entusiasta da casa, aparecendo com certa frequência para degustar um churro recheado de doce de leite. Ainda em se tratando de Corinthians, Danilo, atual jogador do clube, que inclusive é vizinho do local, também se mostrou um entusiasta do churro, frequentemente acompanhado de seus filhos. Orgulhoso, Antonio também citou o futebolista Dinei e Faustão, ele mesmo, como frequentadores.
O proprietário espanhol procurou sempre trazer novidades e evoluções de antigas idéias à tona para o público entusiasta, tanto no âmbito do maquinário quanto quituteiro. Na parte mecânica, desenvolveu até mesmo uma máquina automatizada que gera pingos num determinado intervalo de tempo, muito utilizada nos seus churros em roda. Já na alimentação, criou várias opções que vão desde o churro para diabético, já citado anteriormente, até um projeto de bolo de churro, minuciosamente estudado durante mais de um ano, desde a embalagem até o formato. Atualmente trabalha num projeto secreto que envolve um misto de um popular salgado com churro, uma mistura bombástica e que pode mudar os rumos da humanidade do dia para a noite. Por motivos éticos não fomos autorizados a divulgar do que se trata. Morador do mesmo quarteirão em que se encontra o seu estabelecimento, Antonio tem planos de fazer uma fábrica num galpão conjugado ao local, seus planos ainda apresentam requintes de ambição. Perguntado novamente sobre a Maçã do Amor, afirmou que parou de vendê-la já há alguns anos, por questões de logística e de fácil perecimento. Quem costumava fazê-la era sua falecida esposa. De qualquer maneira, Antonio se mostrou desgostoso com os rumos que o doce tomou no mundo, afirmando, assim como disse em relação ao churro recheado, que estragaram a invenção de seu irmão, com métodos hereges, como por exemplo apenas a caramelização do doce, ao invés de fazer a calda a ponto de bala. Um perfeccionista.

Antonio tem um lado ideológico não tão ortodoxo e nada conhecido dos populares frequentadores de seu estabelecimento. O espanhol é um dos baluartes do ocultismo no país, seguindo a doutrina Gnóstica. Evidentemente, não entrou em grandes detalhes, procurando manter a descrição acerca do assunto, atitude que Zaso Corp. também pretende seguir à risca. O proprietário afirmou que já recebeu muitas propostas remuneradas para participar de palestras e seminários dentre grupos fechados como a maçonaria, recusando qualquer um deles, afinal, acredita que a propagação ideológica daquilo que acredita não pode se misturar com o dinheiro, o que faria com que toda a essência da coisa caísse por terra. Se isso influi ou não na sua maneira de gerir a Casa do Churro, não se sabe ao certo. Independente de ideologia, o espanhol é um entusiasta das boas ações, afirmando que, apesar de o dinheiro acabar sempre por distorcer e envenenar boas intenções, o importante sempre seria o bem que aquilo poderia causar em potencial. Cada vez mais, o proprietário se mostrava uma pessoa de opiniões e visões de mundo fortes e tão espessas quanto o chocolate em que o churro é chunchado em terras espanholas.

A contribuição dos irmãos Farre para o mundo dos churros vai muito além do que as palavras são capazes de definir. Como soldados anônimos, acabaram perdendo certas batalhas, sobretudo no que diz respeito a patentes, cópias e apropriações descaradas de suas invenções, mas nada que chegasse perto de arranhar o legado deixado por eles para sempre na vida de milhões de pessoas, e para toda a história.
A Casa do Churro fica localizada no bairro do Tatuapé, ou na Água Rasa para quem preferir, mais precisamente na Rua Rodrigues Barbosa, 232. A equipe Zaso Corp. tem como indicação o Churro Bom Bom Duplo de Doce de Leite e Chocolate, uma pedida parruda e altamente satisfatória para o entusiasta dum excesso de glicose no sangue. Churronautas, uni-vos.
Obs: Toda e qualquer informação acerca dos relatos contidos nesta matéria saíram diretamente da fonte, ou seja, foram ditas por Antonio Farre Martinez, em entrevista gravada.