Mister Shawarma – Inimigos Históricos Unidos pela Boa Comida

 Fotos: LEANDRO FURINI | Texto: JOE BORGES

Desde a criação do Estado de Israel, em 1948, e, mais precisamente, da Guerra dos Seis Dias, que aconteceu em 1967, em que as férteis e irrigadas Colinas de Golã foram tomadas da Síria por Israel, sírios e israelenses torcem o nariz um para o outro, a ponto de atravessarem a rua quando se vêm, isso se não resolverem entrar em vias de fato ali no local mesmo. Essa rivalidade evoluiu ao status de raiva profunda ao longo de muitos anos, com diversas divergências ideológicas e políticas, aliadas à muitos outros conflitos, como a Guerra do Yum Kippur (tentativa mal-sucedida da Síria de retomar as Colinas de Golã) e a Guerra do Líbano, em que os sírios abertamente apoiaram grupos libaneses contra Israel. Como é de se perceber, Israel é o vizinho malquisto da região, afinal, é difícil se dar bem com alguém que toma de assalto parte significante de seu quintal, ainda mais com a parruda retaguarda estadunidense. Apoiada pela China e Rússia, a  Síria é um país grande e estratégico na região, ainda mais por conta de sua posição anti-imperialista assumida e por ser um canal importante de comércio de petróleo, o que desperta água na boca das sedentas empresas multinacionais do ramo. Como é de se imaginar, o governo de Bashar Hafez Al-Assad, presidente da Síria, dá aquela dificultada nos planos desse conluio, que não vê a hora de derrubá-lo de qualquer forma para poder dar as cartas na região. Depois do eclodir da Primavera Árabe, em 2011, a Síria se viu em situação de guerra civil, onde rebeldes, sobretudo sunitas, passaram a combater as forças do governo, majoritariamente xiitas, numa tentativa de derrubá-lo. Como não é bobo nem nada, o governo americano, com o óbvio apoio de Israel, alegou todo aquele velho papo de polícia do mundo, como ditadura abusiva, armas químicas, terrorismo e etc, não que Assad não se encaixasse em diversos desses pontos, para poder validar um bom motivo para armar esses rebeldes sírios a fim de derrubar o governo local. Com a constante tomada de força desses dissidentes, sobretudo do ISIS, o Estado Islâmico do Iraque e Síria, que vinha avançando com força do leste do país em direção à capital, Damasco, a violência se tornou tamanha que muitos sírios acabaram tendo que deixar o país e imigrar para outros cantos, principalmente para a Europa. Mais ou menos nessa época, e não necessariamente por motivos de conflito, há cerca de 2 anos, um sorridente e tímido jovem cozinheiro sírio, Kasem Bakr, chegava ao Brasil, mais precisamente em São Paulo, trazendo consigo sua invejável habilidade culinária.

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Kasem Bakr.

Kasem é portador de 28 anos de idade, nascido em Damasco e, como dito anteriormente, chegou ao Brasil há 2 anos atrás, tendo se estabelecido na cidade de São Paulo, mais precisamente no bairro do Brás. Antes de chegar à capital paulistana, morara cinco anos na Jordânia. Junto de amigos da colônia árabe que já estavam aqui, trabalhou por mais de um ano numa barraca de comida típica, próxima à Feira da Madrugada, também no Brás, fazendo aquilo que melhor sabe: shawarmas. O shawarma, para os não familiarizados, é um delicioso combinado de finas fatias de carne, frango ou falafel, assadas num espeto vertical e enroladas no pão sírio com legumes e especiarias diversas, se assemelhando muito ao kebab, sua versão turca, também conhecida como gyros na Grécia. Seus cativantes shawarmas acabaram por chamar a atenção de um comerciante local, Ilan Edery, que, enfeitiçado pela combinação bombástica, acabou fazendo a Kasem uma proposta irrecusável.

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Ilan Edery.

Nascido em Tel-Aviv, Israel, há 54 anos atrás, Ilan Edery é um popular comerciante de roupas e acessórios, possuindo duas lojas do ramo no Brás. Seu pai já morava em São Paulo desde os anos 70, há pelo menos uma década antes de sua chegada, que aconteceu há 30 anos atrás. Ilan deixa evidente suas habilidades como bom vendedor, sobretudo através de seu carisma e eloquência. Há 8 meses atrás, se encantara com os shawarmas feitos por Kasem e, sem absolutamente nenhuma experiência no ramo, resolveu propôr a ele uma parceria para abrir um estabelecimento. Depois de diversas pesquisas e estudos, acabaram se fixando na rua Teodoro Sampaio, na região de Pinheiros, local bastante estratégico, de frente para a Praça Benedito Calixto, recanto da boêmia e comércio de bugigangas em geral. O local em questão é o carismático Mister Shawarma, que consiste, em suma, num balcão com alguns bancos e, atrás do mesmo, todo o aparato que Kasem precisa para fazer sua mágica acontecer.

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Mister Shawarma.

A informação da existência do Mister Shawarma chegou até Zaso através de um amigo, Marco Wey, que, durante uma conversa de bar sobre conflitos na região do Oriente Médio, comentou sobre o local e seu cozinheiro sírio, que recebeu constantes elogios por conta de suas habilidades culinárias. O quão interessante era um israelense e um sírio trabalharem juntos em harmonia, e uma curiosidade em provar o lendário shawarma, fizeram com que os correspondentes zasáicos fossem conferir de perto o que acontecia no simpático estabelecimento. Muito bem recebidos, não só por Ilan e Kasem como por Gustavo Vinicius, o apadrinhado do comerciante israelense (e também funcionário do local),  Zaso pôde conferir de perto que a relação entre eles é bastante amigável, de fato. Enquanto Ilan, já tendo conversado bastante com os zasóides, cuidava freneticamente de constantes pedidos, Kasem montava seus shawarmas e respondia algumas perguntas de maneira simpática. Arranhando um português um tanto difícil de compreender, porém bastante correto, o jovem sírio explicou que cozinha desde os 12 anos de idade e que aquela é sua grande paixão. Torcedor do Real Madrid e do São Paulo (fato desconhecido por Ilan e Gustavo, o que causou grande burburinho entre eles), Kasem ainda confidenciou que não é nem um pouco chegado na música brasileira, cenário que já muda bastante quando o assunto é culinária, o jovem sírio é fissurado por arroz e feijão. Segundo o nosso herói sírio, Ilan foi, e é, um dos seus grandes auxiliares na comunicação em português, afirmando achar a língua portuguesa bastante difícil. O jovem é muçulmano sunita praticante, ou seja, segue, além do Alcorão, os ensinamentos contidos na Suna, livro sagrado contendo diversos ensinamentos, cujo nome significa “caminho trilhado”, em alusão a uma espécie de diário dos passos e tradições do profeta Maomé. Kasem não tem nenhum hobby além do próprio trabalho, o que evidencia seu foco na labuta diária. Morando sozinho na região de Pinheiros, deixou sua família no Oriente Médio para vir para o Brasil, sendo que, segundo ele, seus familiares têm bastante vontade de conhecer sua nova terra. Segundo o mesmo, suas razões para ter zarpado em São Paulo são exclusivamente relacionadas a trabalho. Kasem tem bastante contato com a comunidade síria na cidade, que, de acordo com suas palavras, em grande parte não enxerga com bons olhos sua relação com Ilan, fato que não parece incomodá-lo.

Olhando ao redor, era evidente o cuidado que os dois empregavam ao estabelecimento, que, segundo Ilan, há 6 meses atrás, tempo de vida que o Mister Shawarma tem, era uma espelunca abandonada. Perguntado sobre os ingredientes, afirmou que consegue tudo que precisa sem maiores dificuldades no centro de São Paulo, nos entornos do Mercado Municipal. Ainda enfatizou que, pela força que a comunidade árabe tem no local, não poderia ser mais tranquilo conseguir o que precisa para que seus shawarmas sejam concretizados. Ilan resolveu mudar ligeiramente a receita dos shawarmas originais sírios, dando-lhes um toque israelense, sobretudo no acréscimo de homus, e específicas iguarias, tornando-os menos carregados de tempero. Um sucesso absoluto. Enquanto tudo isso era devidamente relatado aos zasalhas, os mesmos devoravam seus pedidos de maneira efusiva, numa emocionante empreitada de alimentação eufórica, deixando Kasem e Ilan orgulhosos de ver a cena. O Zaso recomenda o rango do local de maneira enfática, realmente um grande achado.

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Kasem e Gustavo Vinicius.
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Kasem e Ilan, provando que independente de conflitos e rixas históricas, a amizade e boa convivência podem, e devem, sobressair.

É muito bom saber que existem sírios e israelenses convivendo em harmonia na cidade de São Paulo e trabalhando juntos para prover comida de qualidade indubitável. Mesmo com a desaprovação de muitos conhecidos de ambas as comunidades, os dois amigos vão tocando o estabelecimento de maneira amistosa e co-existindo independentemente de suas diferenças culturais e históricas. A relação de Kasem e Ilan é uma lição a ser levada para o dia-a-dia, ainda mais numa época de ascenção de intolerância, vista com muita clareza por parte de pseudo-engajados políticos e oportunistas competitivos, que parecem se multiplicar a cada dia. A questão entre israelenses e sírios é muito mais profunda do que qualquer conflito que tenhamos aqui em terras brasilóides, o que só ratifica ainda mais o mérito da relação entre os dois camaradas. Numa época de visão dicotômica de “meu time contra o seu”, saber que existem pessoas deixando suas diferenças de lado em prol de uma amizade, causa ou seja lá qual for o motivo, recarrega as baterias da esperança por uma possível luz no fim do túnel da relação humana global, que vem capengando a níveis alarmantes. Vida longa ao Mister Shawarma.

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