Fotos: LEANDRO FURINI | Texto: JOE BORGES
Em Dezembro do ano passado, Zaso Corp. resolveu conferir o que acontecia no bairro da Vila Zelina, recanto da imigração leste-européia em São Paulo. Abatidos pelo calor e pela chateante ladeira da Avenida Zelina, acabaram mudando de planos, o que gerou este relato psicodélico aqui. Mesmo com a mudança abrupta, o interesse pelo bairro e pela maneira com que a cultura do leste europeu influenciou a região não perdeu força, apenas ficou encostado num canto. Dois meses e meio depois, chegou o momento de desencostar essa curiosidade e partir para uma investigação sobre o assunto.
Informações de que uma feira cultural leste-européia aconteceria no terceiro domingo do mês de Fevereiro chegaram até a redação de Zaso Corporation, era a oportunidade perfeita para conferir o que acontecia por lá. Assim como na primeira visita ao bairro, os zasos Joe Borges e Leandro Furini se encontraram na catraca do metrô Vila Prudente e partiram em direção à feira, só que dessa vez tomando um caminho relativamente diferente do anterior. Sem a menor familiaridade com os entornos do bairro, foram seguindo seus instintos/ Googlemaps em direção ao local indicado, logo dando de cara com o Parque Ecológico de Vila Prudente. Uma ruazinha mirrada podia ser vista logo ao lado do local, recheada de simpáticas e simples barraquinhas. Não restavam dúvidas de que a feira era ali, ainda mais por conta de uma grande faixa escrito “Vila Zelina – O Leste Europeu de SP”.
A feira, ao contrário do que a capa desta magnânima matéria faz crer, envolve diversos países da região, e não só a República Tcheca e Eslováquia, um apanhado rico de cultura local. O movimento era razoável, menor do que fora na hora do almoço, segundo os locais. A tarde avançava domingo adentro, as 17h já davam as caras. As enfileiradas barracas conversavam entre si numa dança entre os mais diversos produtos típicos do leste europeu. Sem saber exatamente o que procurar, e absorvendo o máximo de informação possível, os zasilóides iam passeando pelo local despretensiosamente. Logo no início da empreitada, uma solitária senhora, guardiã de uma simpática barraca, lhes chamou a atenção. Na bancada à frente dela apenas uma garrafa de um viscoso líquido e um cartaz indicando que aquele era um licor de mel lituano. Intrigados, resolveram conversar com a senhorinha, filha de imigrantes lituanos que chegaram em São Paulo há mais de meio século. Foi ai que tudo ficou claro e cristalino, como uma epifania que cai do céu direto no topo da cabeça, tão certeira que dói: A matéria de cobertura da feira deveria explorar aquilo de mais interessante e característico que se podia notar no local: as bebidas alcóolicas.
O Krupnikas é um licor típico da Lituânia, uma mistura de mel, especiarias e, geralmente, vodka. Diz a lenda que a receita foi criada por monges beneditinos – vai achando que eles também não curtem uma cagibrina – e acabou se modificando em diversas vertentes ao longo de centenas de anos. Intrigados com a carismática garrafa que tranquilamente repousava sobre a bancada, os zasos pediram uma dose para iniciar os trabalhos. A própria família da senhora da barraca (que na realidade estava no lugar de sua irmã, que normalmente faz o serviço) é que fabrica a bebida artesanalmente. O deguste foi relativamente leve, apesar dos quase 40% de álcool, o licor desceu no creme. O zaso Joe Borges achou muito bom, porém bastante adocicado, num ponto levemente a mais, tendo enxergado tons de laranja no sabor (não levem tão em consideração, ele não sabe muito bem o que fala). Leandro Furini, por sua vez, achou que o ponto estava certo, tendo também detectado canela e cravo na bebida. A unanimidade foi total, todos os dois jurados aprovaram o beberico, perfeito para um deguste inocente. Uma excelente pedida para o domingo à tarde.

Terminado o primeiro beberico, era cair de volta para a rua e dar mais uma volta pela feira, sempre com um olho no peixe e outro no copo, para flagrar toda e qualquer bebida vendida no local. Uma diversidade de rostos diferentes, produtos artesanais e até mesmo música típica compunham o mosaico da feirinha. As informações eram, de certa forma, hipnotizantes. Porém, antes de partir para a próxima bebida, era necessário comer alguma coisa. A única barraca que oferecia esse tipo de serviço era a última da feira. Ao se aproximarem, já perceberam que aquela era a maior barraca de todas, possuindo tanto comidas quanto bebidas típicas, assim como todo um aparato fogareiro para deixar o alimento na medida certa. Um papo rápido, e um avental com informações bordadas, evidenciaram que quem estava ali no comando era uma família oriunda da Tchecoslováquia, saudoso país que hoje em dia está desmembrado em República Tcheca e Eslováquia. Um tipo de linguiça recheada, e com uma mostarda escura sensacional, foi o pedido realizado. Apenas naquela barraca haviam cinco tipos diferentes de bebidas a serem desbravadas. Mas não sem antes sentar numa mesa de plástico para uma alimentação devida, com aquela bela observada ao redor para acompanhar.
De volta à barraca, uma classuda garrafa verde era a mais imponente de todas, foi a escolhida para continuar a epopéia alcóolica. Essa tal garrafa abrigava a Becherovka, um bitter (toma essa sommeliers) de mais de 30 ervas diferentes. Extremamente popular entre os tchecos, que chegam até a chamá-la de “elixir da vida”, geralmente é utilizada como digestivo, sendo normalmente ingerida antes e depois de refeições, mesmo no alto de seus quase 40% de graduação alcóolica. Apesar do costume de se tomar a Becherovka quente, visto que o leste europeu é frio pra cacete, um dos guardiões da barraca salientou que tomá-la bem gelada e com tônica é uma belíssima pedida. Enquanto servia a dose, o anfitrião contou que, certa feita, jogava cartas com sua familia, bebericando Becherovka com tônica, quando em determinado momento um dos envolvidos na jogatina se irritou e tacou as cartas na lareira, acabando assim com a diversão familiar. Beba com moderação. A dose desceu rasgante, porém com traços de refresco. O gosto das ervas envolvidas é uma explosão de sabores tão complexa quanto um transplante de fígado. A bebida é tão peculiar que acabava lembrando mais um remédio. Até aí, nada de absurdo, visto que a Becherovka, sobretudo no começo do século XX, era fabricada e utilizada por médicos como fármaco digestivo.

A próxima pedida veio em dupla, eram os destilados eslovacos Imperator Golden, respectivamente de cereja e amarula. Ambos se encaixam na categoria das palincas, fortes destilados de frutas, muito comuns sobretudo na Romênia e Hungria, apesar de não ser o caso. Falar em palinca é falar em aguardente, e falar em aguardente é falar em porretada. O primeiro gole ficou reservado para o destilado de cereja. Joe sentiu que a secura lembrava muito uma bebida que pouco lhe apetece, o Steinhager, e que a cereja era pouco perceptível. Leandro ainda lembrou de suas características amadeiradas e que gelada a bebida deveria ser muito boa. Já a de amarula, apesar de pouco reconhecível, não se mostrou lá muito diferente em relação ao deguste, as opiniões foram as mesmas que em relação à anterior. O termo palinca passou a arregalar olhos depois desta experiência. Guarde este nome.

A bancada ainda possuía belas opções para o embebedamento zásico, que já ficava evidente nas feições dos envolvidos. A próxima escolha foi o Vilmos, uma palinca de pêra e mel vinda da Hungria, produzida pela tradicional Zwack & Co, informação obtida pelo nosso correspondente, Google. Ao contrário de bebidas milenares e que já passaram por diversas eras da patiférica raça humana, o Vilmos é produzido apenas desde os anos 70 (ao menos dessa mesma maneira), nas versões Pêra e Mel e apenas Mel. Quando a dose veio é que o bicho começou a pegar de verdade. O Vilmos não perde em absolutamente nada para qualquer cachaça, com a clara diferença de ter um forte e seco gosto de mel. A pêra quase não apareceu, ao menos para os debilitados paladares dos jurados, que tentaram mas não conseguiram conter a careta com a acachapante bebida. Sapatada.

Por fim, restava mais uma palincada, uma garrafa de Slivovitz de damasco. A marca é mais comumente conhecida por seu conhaque de ameixa, um sucesso absoluto no mundo todo. Na Inglaterra e Estados Unidos é muito comum e conhecido como plum brandy, termo que vem inclusive impresso no rótulo. O seu formato adicionou pontos de carisma sedutores à garrafa, que é redonda e achatada, não lembrava nada que fosse comum em São Paulo. A dose causou grande cacetada nos zasos, deixemos que os relatos, excelentemente anotados em guardanapo, falem por si só. Infelizmente, o rapaz anfitrião da barraca acabou levando a garrafa embora antes que os zasos se tocassem do ocorrido.
Já tendo adentrado os enormes portões sagrados da embriaguez, os correspondentes continuaram a perambular pela pequena feira, prestando mais atenção a diversos detalhes. Sem dúvida alguma, aquele era um lugar bastante divertido e curioso para quem não está muito familiarizado com a cultura leste-européia, e pra quem está também.
Pararam, então, em frente à uma barraca de cerveja artesanal, a única da feira naquele momento. Os responsáveis pela mesmo já estavam desmontando seus aparatos quando os zasos chegaram. Com boa vontade, resolveram lhes fazer uma simpática promoção nos choppes escuro e claro, respectivamente. As Gandras Alus são produzidas em casa por um carismático mestre cervejeiro paulistano de origem lituana. Portando uma camiseta do país, ele serviu os zasalhas e ainda, atenciosamente, quis saber o que acharam. Ambos os choppes tinham notas bastante cítricas por conta do uso de casca de laranja e coentro, receita bastante atípica ao que se está acostumado por aqui. Segundo o próprio produtor, a bebida harmoniza muito bem com frutos do mar lituanos, também parte da feira, mas que, por questões de horário, não pôde ser contemplado. A imaginação teve que fazer sua parte.
O fim da feira era tão visível que chegava a ser comovente. Muitas barracas já haviam sido desmontadas e o clima de pós-expediente tomava conta da rua. Porém, uma barraca se mantia firme e forte em meio ao desmanche geral. Ao chegarem perto, as cores deixaram muito claro que era típica da Romênia. Em meio a alguns morcegos e dráculas, havia ainda uma garrafa sobressalente: era a lendária, e já citada anteriormente, palinca Slivovitz de ameixa, também conhecida como Slivovica. O guardião da barraca era um simpático homem de último nome Borges, provando que este belíssimo sobrenome vai muito além dos azeites portugueses. Além do comércio de produtos típicos, ali eram também vendidas excursões pelo leste europeu, mais precisamente pela Romênia, veja só. Voltando ao assunto beberico, foi servida, enfim, a palinca final. Já bastante debilitados, os zasos botaram pra dentro a aguardente para, só assim, descobrirem que o golpe era tão severo quanto o da sua irmã de Damasco, porém, dessa vez, com a ameixa mais evidente no gosto, além de menos secura na garganta. Todo o prestígio que a palinca tem fez sentido.
A contagem era oficial, haviam sido degustadas todas as bebidas alcóolicas disponíveis na feira naquele domingo. A não ser que alguma não estivesse disponível ou escondida, o que estava visível e à venda fora ingerido. O saldo até o momento era de pelo menos oito doses e dois copos de cerveja, um número capaz de derrubar animais de três ou mais pernas. A missão, porém, não poderia acabar ali. Os zasalhas haviam recebido informações de que havia um bar extremamente tradicional pela região, o Bar do Vito, tradicionalmente de origem lituana. Para coroar a experiência, resolveram se aventurar bairro adentro em busca do recinto. Porém, um detalhe pertinente lhes incomodava os ânimos, uma tempestade parecia se aproximar com força. Apressadamente, e já sem nada para fazer na agonizante feirinha, partiram Vila Zelina adentro.
Já ao quase escurecer, finalmente chegaram ao Bar do Vito, que acusava um belo movimento, ainda mais se levarmos em consideração um domingo. O bar tinha uma ambientação retrô sincera e original, nada espontaneamente forjada, como vemos por aí com frequência. Aparentava ter a mesma estrutura, móveis e aparatos de meio século atrás. Os zásons sentaram no balcão de madeira, iluminado por focos de luz alaranjados, e pediram uma Itaipava para coroar aquele momento. Ao fundo, uma banda interpretando clássicos do róque nacional premiava todos os envolvidos com alegria inesgotável, enquanto um medíocre jogo de futebol entre São Paulo x Rio Claro acontecia na tevê. O ambiente rapidamente ganhou a simpatia dos zasalhas, que assistiam ao jogo enquanto conversavam sobre o ocorrido na feirinha. Não demorou muito para perceberem que, apesar da tradição que o lugar evidentemente carregava, não haviam funcionários que aparentavam ser de origem leste-européia e sequer comidas ou bebidas típicas. Um pouco decepcionados, foram conversar com um simpático garçom que vinha lhes atendendo. Perguntaram sobre a falta de lituanidades no cardápio e esse lhes disse que faziam muitos anos que o bar havia se adequado ao padrão típico brasileiro de petiscos e acepipes. Apesar dos dizeres do funcionário, uma pesquisa posterior, mais ou menos aprofundada, mostrou que, além do famoso bolinho de carne, a geléia de porco, ou de vaca, acompanhada de mostarda escura e pão francês seriam pratos típicos lituanos servidos no local. Fica no ar se o garçom não sabia da origem do tal rango, ou se não estava mais disponível.

Já de missão cumprida no estabelecimento, e com mais algumas cervejas reforçando a pochete, os zasuânios pagaram a conta e saíram do local em direção ao Metrô Vila Prudente, era hora de dar trégua para o fígado, ou não, já que Rafael Bosco, amigo de longa data e protagonista deste relato, havia convidado-os para uma cerveja de fim de noite ao pé do Metrô Alto do Ipiranga. Não recusaram. No meio do caminho, as forças da natureza resolveram dar as caras, aplicando-lhes uma chuvaralha violenta.
O saldo de toda esta epopéia alcóolica foi de doloridas ressacas e novos conhecimentos adquiridos acerca da fascinante cultura do leste europeu. A curiosidade foi desbravada em grande estilo e os envolvidos na empreitada deixaram claro que pretendem voltar a visitar a feira, desta vez como forma de lazer mesmo (não que esta não tenha sido). Ao menos uma vez por mês o evento dá as caras pelo bairro, merecedor da atenção do internauta interessado em um beberico inusitado ou em um passeio despretensioso.