Fotos: LEANDRO FURINI | Texto: JOE BORGES
Há algumas luas atrás, na época em que o zasóide Joe Borges residia em um prédio no centro de São Paulo, o mesmo teve a idéia de doar algumas roupas e objetos pessoais para a comunidade que habitava o edifício vizinho ao seu, um ex-prédio do INSS que era ocupado pelo MMC, o Movimento de Moradia do Centro. Depois de muito bem-recebido pelos moradores, o modesto jovem voltou à sua fascinante rotina. A vida seguiu e, pouco tempo depois, numa noite em que Joe e o zasileiro Leandro estavam tomando uma cerveja em frente ao falecido, fuleiro e fantástico mercado Econ (que se localizava exatamente em frente ao prédio ocupado), uma curiosidade forte atingiu-os em cheio: Como seria o interior do prédio?
A dúvida ganhou força e fez com que Joe fosse até a ocupação, alguns dias depois, conversar com algum habitante disposto a atendê-lo. Assim sendo, descobriu que o coordenador do movimento responsável pela ocupação era Luiz Gonzaga da Silva, vulgo Gegê. Com a valiosa informação em mãos, o zasildo marcou uma reunião com o dito cujo, num humilde boteco no tradicional bairro do Bixiga, a fim de ter sua autorização para entrar no local.
Sob o forte calor da manhã de fim de semana, Jonas, acompanhado de Leandro e Amanda (correspondente zásica direta), chegaram ao local marcado para a reunião e encontraram Gegê muito à vontade, sentado em sua cadeira vermelha de bar. Ele conversava com um rapaz no auge dos seus vinte e todos anos que acabou por dar licença para que a reunião pudesse acontecer, o mesmo portava um boné do MST de causar inveja. Se assentaram e logo foram puxando assunto com o coordenador, que os recebeu de barbas abertas. Gegê explicou de maneira didática e relativamente sucinta como funcionava o movimento, dizendo que ele era coordenador geral de cerca de 20 ocupações espalhadas pela cidade, sendo que cada uma delas possuía seu próprio diretório organizacional. Os três explicaram à ele que iriam abordar o tema de maneira mais sociológica e nem tanto ideológica/ política, focando mais na convivência e comportamento dos ocupantes. Com certa pressa, por conta de uma palestra que iria ministrar, Gegê autorizou-os imediatamente, prometendo avisar os responsáveis pela organização da visita. Dito e feito.

De visita devidamente marcada, os aventureiros se reuniram na casa de Joe para definir os rumos da humanidade. Assim que chegaram a uma conclusão rasa de como proceder, partiram para a ocupação. Ao adentrarem o recinto, se impressionaram com a cordialidade e com a organização do local, era dada a largada para os relatos a seguir. Quem atendeu-os e guiou-os foi o “síndico” do prédio, um solícito corretor de imóveis que morava em Itaquaquecetuba, mas por questões ideológicas e de compromisso com o movimento, residia no local a maior parte do tempo.
Num primeiro momento, a ocupação estava bastante pacífica e os habitantes mal apareceram, o que fez com que o primeiro foco fosse diretamente direcionado para o hall principal e as escadarias que levavam ao primeiro andar. A arquitetura do local ainda preservava muitas de suas características originais, com muito mármore escuro e detalhes bastante barrocos, realmente um belo prédio, porém deteriorado pelo tempo de maneira quase poética.
Ao chegar ao primeiro andar, os jovens se depararam com tapumes que dividiam os “apartamentos” de cada morador, foi aí que o primeiro contato com uma família residente do local aconteceu.
Guiados pelo simpático “síndico”, adentraram o primeiro apartamento, habitado por uma senhora costureira, seu filho (que a ajudava em seus ofícios) e um gato (que em nada a ajudava no trabalho). Ela explicou que anteriormente morava numa casa no bairro do Tatuapé, mas por questões financeiras acabou por se filiar à ocupação. O apartamento era realmente muito organizado e contava, inclusive, com aparatos eletrodomésticos de fina estirpe.
A conversa foi ganhando corpo e novas, e interessantíssimas, informações acerca da convivência no local vieram à tona, como o fato do prédio só começar a ter qualquer tipo de eletricidade a partir do momento em que os postes de luz da rua são ligados. Rigorosamente, cada morador tem sua função social, com tarefas muito bem divididas, o que requer muito comprometimento de todas as partes. Além disso, ao contrário do que o senso comum imagina, os ocupantes têm seus devidos trabalhos e têm que arcar com um aluguel quase simbólico. Houve uma época em que havia uma cozinha comunitária mas, por problemas técnicos, os moradores optaram por cada um ter a sua própria. O senso de cooperação e ajuda ao próximo é algo realmente muito presente. Ficava cada vez mais claro que as regras de convivência eram bem rígidas, bastava um deslize para que o deslizante fosse mandado para o olho da rua. Nenhum dos ocupantes podia ingerir bebida alcoólica ou chegar embriagado no recinto e era proibida a entrada de qualquer transeunte depois das 22h (com algumas excessões para casos de estudantes ou trabalhadores que têm horários noturnos). As visitas tinham que ser devidamente agendadas com atencedência e com o consentimento do comitê organizador. Realmente uma fascinante sociedade alternativa que parecia funcionar de maneira eficaz.
Já com as cabeças bastante ocupadas de informações valiosas, os zasalhadores subiram aos andares seguintes para ter uma visão mais ampla daquilo que lhes foi explicado, topando com novos apartamentos e novas histórias.
Ao pé do segundo andar, um senhor tímido observava tudo um tanto quanto desconfiado, mas nada que algumas palavras não lhe fizesse ganhar confiança na boa intenção dos jovens. O bom velhinho vendia brinquedos nas ruas do centro de São Paulo, tendo morado muitos anos no Rio de Janeiro e em Salvador. Seu apartamento não deixava dúvidas de seu ofício.
Ainda no mesmo andar, foram apresentados a mais uma moradora muito simpática, uma enfermeira vinda da Bahia que trabalhava num hospital próximo à ocupação, morando com seu filho adulto. A casa dela chamou bastante a atenção pelo capricho com que os móveis e aparatos domésticos eram dispostos. A equipe Zaso Corporation foi logo recebida com um cafézinho amistoso.
Em meio à despretensiosa conversa, Gegê surge triunfal para receber a trupe, à essa altura as curiosidades acerca do prédio já haviam sido bastante saciadas, faltava apenas uma última e edificante conversa com o coordenador que acabara de surgir.
Todos desceram de volta ao hall de entrada. À essa altura, muitos moradores faziam um social na entrada, tendo suas devidas atenções chamadas pela presença dos zasalhas e Gegê, que parecia ser visto com muito respeito pelos ocupantes. Sentaram-se ao pé da escada e conversaram durante quase uma hora, em que o guru contou detalhes de sua trajetória na luta política e ideológica. Em meio a fervorosos relatos, um helicóptero pairava acima da ocupação, ofuscando parte das informações com seu nauseante barulho e deixando Gegê bastante irritado com o ocorrido, mas nada que atrapalhasse sua dissertação sobre sua trajetória de vida.
O assunto estava ótimo e podia se estender por dias, mas chegou o momento da despedida, o sol já havia baixado e o fim de tarde começava a dar as caras. Os moradores reunidos na frente do prédio se despediram da equipe muito agradecidos pela visita, ficava bastante evidente que eles viam valor em receber atenção de pessoas de fora, o que não acontecia com muita frequência.
Ficou claro aquilo que já era sabido, a princípio de maneira extremamente superficial, pelos jovens, mas que foge bastante da imagem que foi formada no inconsciente do senso comum, como sempre bastante equivocado. Os movimentos e ocupações são comunidades sérias e funcionais formadas por pessoas trabalhadoras e que arrumaram as suas devidas maneiras de se encaixar numa sociedade hostil e repressora, reivindicando seus merecidos direitos. A organização e convivência dentro do prédio é tão complexa quanto a de qualquer edifício “legalizado” e perceber a maneira como as coisas funcionam lá dentro foi uma experiência esclarecedora. Por fim, mas não menos importante, é fundamental levar em consideração que apesar do ambiente estar o mais aprazível possível, fica claro que a razão principal da ocupação existir é a necessidade de luta por moradia própria e que a mesma não passa de uma fase transitória para conseguir o bem maior da casa própria. A ocupação não é um fim, mas sim um meio.